Ando devagar porque já tive pressa*



“Uma das coisas que mais me incomoda nesta sociedade voraz em que vivemos é a forma como estamos a educar as nossas crianças. A pressa que pomos em tudo. No seu crescimento, nas rotinas do dia-a-dia, nas agendas atarefadíssimas e sem espaço para respirar - quanto mais brincar, com que as sobrecarregamos, obrigando-as a "crescer" antes do tempo, numa loucura desenfreada de actividades de todos os géneros e feitios, antes e depois de entrarem para a escola. 

Aflige-me ouvir miúdos de quatro, cinco, seis anos dizerem que estão aborrecidos, que não têm nada para fazer, rodeados de brinquedos e dispositivos electrónicos com as mais variadas funções que supostamente os deveriam "entreter". Crianças que se sentem completamente perdidas se ninguém lhes fizer a papinha toda e lhes disser o que fazer a seguir a cada segundo; miúdos que não sabem estar sozinhos, para quem o silêncio é completamente aterrador e a quem nunca foi dito que, mesmo quando estamos sós jamais estamos sozinhos, a quem nunca foi ensinado a escutar a própria voz e a usá-la para dar vida à imaginação que todos carregamos dentro de nós. Adultos em miniatura a quem exigimos mundos e fundos, sobretudo que nos deixem em paz com os nossos problemas, as nossas vidas aceleradas e tantas vezes sem sentido.

É claro que há excepções, como em tudo nesta vida. Famílias que têm feito um esforço para tirar o pé do acelerador e dar valor ao que realmente importa. Novas formas de viver em sociedade, ritmos reinventados, caminhos cada vez menos alternativos que vão sendo trilhados por alguns.
No entanto, e desde que me mudei para Londres essa percepção foi colocada debaixo de uma lupa, há ainda demasiadas crianças e jovens completamente reféns de rotinas absurdas, desgastantes e castradoras e envoltos em expectativas completamente inumanas e arredadas do que é, verdadeiramente, ser criança.

Estamos a criar crianças em redomas, físicas e mentais. Deus nos livre de as deixarmos sentirem-se frustradas, coitadinhas, jamais se recomporiam. Ensiná-las a pensar e depois ainda terem o desplante de nos questionarem, de nos porem em causa? Não, sossegadinhos a fazer trabalhos de casa repetitivos e inomináveis é que estão bem. E limpinhos, de tablet na mão, que lá fora há demasiados perigos e dá demasiado trabalho criar seres humanos independentes e autónomos, conscientes do mundo que os rodeia, gratos, atentos, empáticos e com uma visão do mundo mais abrangente do que a Internet e a televisão por cabo os permite alcançar. Há excepções, volto a repetir.

No entanto, as nossas crianças não deixam de ser apenas um reflexo de nós próprios - adultos numa correria desenfreada em busca sabe-se lá de quê. “



Tinha o texto acima guardado em rascunho há vários meses. Queria ter voltado a ele com tempo, havia muitas outras ideias que queria ter acrescentado, coisas que me atormentam a alma todos os dias. 

Depois veio este vírus maldito e as nossas vidas foram viradas de ponta-cabeça. O tempo ganhou outra substância, os dias outros ritmos e foi-nos pedido a  (quase) todos para ficarmos em casa. 
As nossas vidas continuam cheias de rotinas e afazeres, no entanto tudo parece ter sido posto em perspectiva. Espero que esta paragem forçada não sirva apenas para nos ajudar a salvar vidas - a nossa e as dos outros, mas nos obrigue, também, a repensar valores e a focarmo-nos no que é, verdadeiramente, importante. 


*Tocando em frente - letra de Renato Teixeira e música de Almir Slater


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