No meio do caminho tinha uma pedra*



Ainda não consegui encontrar a paz no meio disto tudo. Ando às  voltas com sentimentos vários, um turbilhão de emoções que vão e vêm como as marés. Apetece-me chorar, gritar, maldizer o vírus maldito e os que nos governam. Para, logo de seguida, querer gritar ao Mundo que tudo irá ficar bem, que vamos arranjar forma de sair desta, que não deixaremos todas as mortes serem em vão, que vamos ser todos crescidinhos e fazer a nossa parte. 
Não sei se vamos. Não sei o que irá acontecer ou se há alguma lição a tirar disto tudo. Sei que nos teremos todos de reinventar, de certa forma. De chorar os mortos, fazer contas à vida e seguir em frente. De preferência, mais solidários e empáticos, mais conscientes do Outro e de nós mesmos. Nenhum Homem é uma ilha e isto toca mesmo a todos - desengane-se quem pensar que daqui para a frente não vão ser precisos esforços conjuntos para sarar as feridas e devolver a vida e a dignidade às pessoas, sobretudo àquelas que nunca as tiveram. 
Ainda não consegui encontrar a paz no meio disto tudo. Tenho tentado focar-me ainda mais nas coisas bonitas e simples da vida, agora que este vírus que nos fez de repente olhar para dentro - de casa e de nós mesmos, abrandando o nosso ritmo de vida, nalguns casos, e mudando rotinas a todos nós . 
Gostaria de acreditar que esta mudança será apenas positiva, que vamos sair disto todos muito mais pacientes e sábios, mais próximos e unidos, mais capazes de nos ajudarmos uns aos outros e de nos focarmos no essencial. Não sei se vamos. Continuo a achar que estas "crises" são como lupas de aumento e só  nos vêm  mostrar ainda com maior nitidez o caráter de cada um de nós . Uma forma de nos ajudar a separar o trigo do joio, os ratos dos homens. 
Ainda não consegui encontrar a paz no meio disto tudo - e não há receitas universais para que essa paz seja alcançável . Aqui, terá que ser cada um por si a descobrir o que melhor resulta para cada um. Há quem consiga encontrar conforto e restabelecer uma certa ordem na loucura destes dias enfiando-se na cozinha a fazer todas aquelas receitas que até aqui nunca tinha tido tempo ou disponibilidade  para fazer; quem faça concursos de bolos com amigos nas redes sociais; quem aproveite para ler tudo e mais um par de botas; para ver todos os filmes e séries disponíveis ; há quem faça  limpezas e arrumações ; quem transforme a sala de estar num ginásio improvisado; quem passe horas a falar com familiares e amigos, ao telefone ou nos skypes da vida, inventando verbos e fazendo planos para 'zoomar' no fim de semana.
Ainda não  consegui encontrar a paz no meio disto tudo. Já  passei a fase da negação e da culpabilização inevitável(o que poderia ter feito para ajuda a evitar tudo isto; talvez devesse ter prestado mais atenção  às  notícias, ter-me inteirado mais e melhor sobre o assunto, mudado hábitos e rotinas há  mais tempo). Neste momento, há ainda muita raiva dentro de mim: pela forma como todos nós, de certa forma, lidamos com tudo isto, a começar pelos governos. Raiva em relação à incerteza que paira nas nossas vidas em relação a tudo, sobretudo ao futuro. A instabilidade dos dias, que não permite que se aproveitem as horas de forma mais produtiva. 
Ainda não consegui encontrar a paz no meio disto tudo. No entanto, preciso urgentemente de deitar cá para fora tudo o que me consume o corpo e alma neste momento. Preciso de encontrar a serenidade necessária para gerir todo este turbilhão de emoções e transformá-las em ações concretas e construtivas. Um dia de cada vez. 


E fiquem em casa, pela saúde de todos nós .  


*Carlos Drummond de Andrade

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