A neta da Aninhas



Quando era miúda, uma das coisas que eu mais gostava era quando a minha avó Aninhas ficava doente. Dito assim parece algo absurdo, mas para mim, a minha avó ficar de cama - o que acontecia com alguma frequência devido a vários problemas de saúde de que sofria, era sinónimo de muitos mimos e lanches melhorados. Assim que eu e o meu irmão  chegávamos do colégio, enfiávamo-nos na cama da avó e ali ficávamos quase até à hora de ir dormir. Naquela cama que nos parecia gigante, fazíamos os trabalhos de casa, lanchávamos, víamos televisão, falávamos sobre os nossos dias, líamos as revistas da avó e éramos mimados com casadinhos de queijo e marmelada, bolos caseiros e scones acabados de fazer pela Ji, que invariavelmente se juntava a nós, sentando-se ao fundo da cama.
Lembro-me de a minha mãe nos ralhar, a nós e à avó, onde é que já se viu uma coisa assim, que a avó precisava de descansar, que já éramos demasiado crescidos e assim a avó quase nem tinha espaço para se deitar direito. A avó sorria e piscava-nos o olho, pegava no seu saquinho com o crochet e continuava a comentar a novela ou a série do dia. A avó detestava estar sozinha e sei que aquelas tardes foram tão felizes para ela como para nós. 
Uma das minhas melhores redações, na 3ª classe, foi escrita naquela cama. Lembro-me da avó se ter emocionado a lê-la e ainda hoje morro de saudades da forma como ela me pedia "então, mostra-me lá o que andaste a escrever". Uma das coisas preferidas da avó era fazer-me a revisão da matéria antes dos testes. Ficava tristíssima por não o poder fazer com as disciplinas em Alemão. Um dia disse-lhe que lhe ia ensinar a falar Alemão só para me ajudar a estudar. Após uma ou duas lições saiu-se com um "ai filha, isso é pior do que Chinês", que nos fez rir durante largos minutos. Como era fina como um coral, foi aprendendo algumas palavras ao longo dos anos, que a ajudavam a decifrar os planos codificados de um bando de miúdos bilíngues que aturava quase todas as férias e muitos fins-de-semana. 
A avó cheirava a Bella Aurora da embalagem verde e branca. Era sardenta e "sinaleira", como eu e a minha mãe, e usava um creme de cenoura com um cheirinho delicioso quando íamos para a praia de Miramar. Raramente nos negava um gelado, um pacote de batatas fritas ou uma embalagem de Língua da Sogra, mas obrigava-nos a dormir a sesta, mesmo quando já nos achávamos demasiado crescidos e queríamos ver a série do macaco. 
Discordávamos de muita coisa e lembro-me de algumas discussões mais acessas, sobretudo na adolescência, quando as diferenças geracionais me começaram a fazer mais comichão. Tínhamos visões muito diferentes em relação ao que é ser Mulher e ao seu papel na sociedade e uma série de outras coisas. No entanto, concordávamos no essencial e encontro em mim, hoje, muita coisa da minha avó: uma certa estética e atenção ao detalhe, o gosto pela terra e pela Natureza, a paixão por plantas e flores e por casas cheias e mesas bem postas. A noção de que é possível fazer muito com pouco e o gosto pelas coisas simples e pelos pequenos grandes prazeres da vida. 
De cada vez que o meu sobrinho pergunta "quantos somos hoje?", lembro-me da avó e de como ela teria adorado este nosso pequeno artistinha, que adora ver a família e os amigos reunidos à volta de uma mesa e de andar no laré, tal como ela. Como se teriam divertido a preparar piqueniques e aventuras.
Tenho muitas horas de aborrecimento acumuladas a dobar meadas em novelos, a descascar frutas e legumes, a limpar pratas e bibelôs. Acho que muita da minha capacidade de adaptação e de conseguir encontrar sempre alguma coisa para fazer, mesmo nas situações mais aborrecidas, ficou a dever-se àquelas tardes secantes e repetitivas. Tardes essas que deixaram uma enorme nostalgia. 
Tenho pensado muito na avó ultimamente, sobretudo devido a este mundo cada mais polarizado em que vivemos. É possível fazerem-se pontes e respeitar os outros, mesmo quando eles são - aparentemente - completamente diferentes de nós. Sabermo-nos colocar no lugar de outra pessoa, enxergá-la e respeitá-la por completo, sem julgamentos à priori e sem nos acharmos donos de verdades absolutas, é cada vez mais urgente. E o amor é a única linguagem possível. 

Sem comentários:

Enviar um comentário